quarta-feira, 2 de março de 2011

O trem dos loucos

 O produtor cultural Marcelo Andrade, Moacyr Scliar (1937-2011)
e o Dr. Jairo Toledo visitam o Museu da Loucura, de Barbacena, em 2007
(foto:Arquivo Dr. Jairo Toledo)
Texto escrito por Moacyr Scliar, em 2007, após sua visita ao Museu da Loucura, de Barbacena...

Barbacena, onde estive na semana passada, para uma palestra, já foi conhecida como “a cidade dos loucos”. É uma história interessante: no começo do século passado, a cidade pleiteava se tornar a capital de Minas Gerais. Perdeu para Belo Horizonte, mas, como costuma ocorrer em nosso país, os políticos trataram de providenciar algum tipo de compensação para os barbacenenses.
Ora, naquela época grandes hospícios estavam sendo construídos em vários locais do país (o São Pedro de Porto Alegre, tinha sido inaugurado alguns anos  antes).  Era a fase do alienismo: a psiquiatria não tinha muito a fazer pelos pacientes, e por causa disso os internava em instituições gigantescas. Barbacena ganhou, então, o seu hospício. Foi construído numa fazenda que vejam a ironia, havia pertencido a Joaquim Silvério dos Reis, o traidor da Inconfidência Mineira, que recebera a propriedade com prêmio para o “serviço prestado”.
O hospício de Barbacena recebia pacientes de uma imensa região. Era no chamado “trem dos loucos”, equivalente à “nau dos insensatos”, que percorria os rios da Europa levando malucos para os hospícios. A população nosocomial chegou a 5 mil pessoas, mais ou menos como no São Pedro.
Obviamente, não havia leitos para todos. Muitos ficavam num vasto salão, cujo chão era forrado de capim. Ali, dormiam entre dejetos, insetos e ratos. Todos os dias pela manhã, os serventes recolhiam os cadáveres dos que tinham falecido à noite, tiravam o capim, colocavam-no para secar ao sol e repunham-no no lugar. Essa situação mudou. Em primeiro lugar, pela revolução terapêutica: novos medicamentos tornaram possível o tratamento de pacientes em ambulatório. Além disso, igualmente importante, cresceu a consciência dos direitos dos doentes. Os grandes
hospícios foram sendo esvaziados. Hoje, no hospital de Barbacena, restam poucas centenas de pacientes, em sua maioria casos sociais: pessoas que perderam seus vínculos e não têm para onde ir.
Uma parte do hospício de Barbacena foi transformado em museu que visitei, em companhia do doutor Jairo Furtado Toledo, idealizador do projeto, um dedicado psiquiatra que acontece ser também o vice-prefeito da cidade. O museu é pequeno, mas impressionante, e documenta de maneira sóbria as limitações de uma psiquiatria que Machado de Assis satirizou em “O Alienista”.
Barbacena não se restringe a evocar essa época por meio do museu. Há também um evento anual em que o tema da loucura é abordado por meio de espetáculo artístico e de palestras.
Barbacena não é mais a cidade dos loucos. O que a torna conhecida agora é produção de rosas, exportadas inclusive para Europa. Como observa o doutor Jairo, trata-se de uma troca simbólica. Rosas no lugar de Loucura: quem dera que isso fosse a fórmula capaz de governar o nosso mundo.

Texto Publicado pelo Jornal Zero Hora, Porto Alegre, no dia 19 de março de 2007, página 2.

Nenhum comentário:

Postar um comentário